sábado, 8 de maio de 2010

A saia amarrotada


Na minha vila, a única vila do mundo,
as mulheres sonhavam
com vestidos novos para saírem.
A mim,quando me deram a saia de rodar,
eu me tranquei em casa.
(...)Nasci para cozinha,pano e pranto.
(...)Beleza era para as mulheres de fora.
Elas desencobriam as pernas para maravilhações.
Eu tinha joelhos era para descansar as mãos.
Por isso, perante a oferta do vestido, fiquei dentro,
no meu ninho, ensombrado.
Estava tão habituada a não ter motivo,
que me enrolei no velho sofá.
Olhei a janela e esperei que, como uma doença,
a noite passasse.
no dia seguinte, as outras chegariam e me falariam do baile.
E nem inveja sentiria.
Mais que o dia seguinte, eu esperava
pela vida seguinte.
(...)Única menina entre a filharada,
fui cuidada por meu pai e meu tio.
Eles me quiseram casta e guardada.
Para tratar deles , segundo a inclinação das suas idades.
(...)-Filha, venha sentar.
(...)E apontavam uma estreiteza entre
cotovelos em redor da mesa.
Os braços atropelavam, disputando as magras migalhas.
Em casa de pobre ser o último
é ser nenhum.
(...)E esperava ser a última, arriscando
nada mais sobrar.
Mas havia essa voz que sobrepunha minha existência:
-Deixem um pouco para a miúda.
Afinal, sempre eu tinha um socorro.
Um pouco para a miúda:assim
sem necessidade de nome.
(...)E os olhos da família, numerosos e suspensos,
a contemplarem a minha mão,
atravessando vagarosamente a fome.
Não tendo nome, faltava só não ter corpo.
(...)Na minha vila, as mulheres cantavam, eu pranteava.
Apenas quando chorava me sobrevinham belezas.
Só a lágrima me desnudava,
só ela me enfeitava.
Na lágrima flutuava a carícia desse homem que viria.
(...)Esse homem me daria, por fim,um nome.
Para meu apetite de nascer,
tudo seria pouco, nesse momento.
(...)Chegava-me ainda a voz do meu velho pai
como se ele estivesse vivo.
Era a voz que fazia Deus existir.
Que me ordenava que ficasse feia,desviçosa da vida inteira.
(...)Sempre ceguei em obediência,enxotando tentações...
Obedeci mesmo quando ele ordenou:
-Vá lá fora e pegue fogo nesse vestido!
Eu fui ao pátio com a prenda que meu tio
secretamente me havia oferecido.
Não cumpri.
Guiaram-me os mandos do diabo e,
numa cova, ocultei esse enfeitiçado enfeite.
(...)É essa voz que ainda paira, ordenando a minha vez de existir.
...E pergunto:posso agora, meu pai,
agora que já tenho mais ruga que pregas tem esse vestido,
posso agora me embelezar de vaidades?
Fico à espera de autorização, enquanto vou ao pátio
desenterrar o vestido do baile que não houve.
(...)Agora estou sentada,olhando a saia rodada,
a saia amarfanhosa,almarrotada.
E parece que me sento
sobre minha própria vida.(...)
(Fio de Missangas -Mia Couto)


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