sábado, 8 de maio de 2010

Amor Líquido

Um dia desses quando saía de casa,
deparei com meu vizinho, Jossinaldo.
Estava no patamar, como que me esperando.
Dos braços cruzados, espreitava uma trela.
Me arrepiei.
Sempre eu o tinha evitado, por causa dos
ditos e desditos.
O homem era conhecido pelo que fazia no parque:
levava um peixe a passear pela trela.
(...)No extremo da fita de couro estava
amarrado, pela cauda, um gordo peixe.
(...)E agora lá estava ele,
a tira pendente como uma língua
que emergia do corpo.
Já eu remastigava uns apressados bons dias
quando o vizinho se me interpôs
e esticou o braço na minha direção.
-Peço-lhe este favor!
Estremeci receoso.Que favor?
E era esse mesmo obséquio: o de ir eu
substituí-lo no passeio ao peixe.
Esquivei-me.
O homem não desistiu:
que ele estava se sentindo doente, desvanecente
e o peixe do lago, não podia ficar orfão,
sem ninguém para o conduzir,
na fluência das águas.
-Por amor,não recuse!
Fiquei vacilando enquanto,
dentro de mim, ecoavam os rumores que
descontavam em Jossinaldo e seus descostumes.
No bairro todos acreditavam compreender
o comportamento do exótico morador.
(...)Minha sabedoria é ignorar as minhas
originais certezas.
O que interessa não é a língua materna,
mas aquela que falamosmesmo antes
de nascer.
por isso me dei licença de escutar Jossinaldo.
E fui saindo de casa, caminhando
ao mesmo passo do afamado vizinho,
lado com lado.
Na rua me olhavam,surpresos.
(...)-Vá pegue na trela para ele lhe ganhar familiaridade.
Com o coração de fora, lá segurei na corda.
(...)-Deixe-me despedir dele!
Ajoelhado sobre as águas, o vizinho
falou palavras que não eram de língua nenhuma conhecida.
(...)Sou eu agora quem,
pela luz das tardes,
passeia o peixe no lago.
À mesma hora uma misteriosa força
me impele para cumprir aquela missão,
para além da razão,
por cima de toda vergonha.
E me chegam as palavras do vizinho
Jossinaldo, ciciadas no leito
em que desfalecia:
-Não existe terra, existem mares que estão vazios.
Dentro de mim, vão nascendo palavras
líquidas, num idioma que desconheço e me vai
inundando todo inteiro.

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