sábado, 19 de janeiro de 2008

Manchas


Não sou de esfregar manchas com vinagre e sal.

Ficar esbaforido com uma toalha tentando reparar o estrago ou estender o pano na pia como um alucinado procurando a aliança no ralo ou me banhar de talco como um bebê.

Minha memória é feita de manchas.

A que eu mais admirava era a do fundo do estojo do lápis de cor.

Não queria trocar a caixinha de madeira.

Iniciava o ano letivo e riscava o estojo da lista de material escolar.

Fazia beiço. O fundo tinha a graça do risco involuntário, emaranhado de cores que buscavam cada uma a sua maneira gritar mais alto.

A paleta resplandecia intensa, úmida, pintura na rocha.

O estojo fazia barulho com a tampa.

O barulho me acordava para a aula.

Outra mancha que me tranqüiliza é a do vinho na toalha da mesa.

Meu pai bebia um cálice e não havia jeito da toalha passar imune à borra na janta.

A mancha do vinho significava a hora de dormir.

O círculo vermelho no linho me anoitecia, um relógio de pano.

Sempre fui de me sujar, de me espalhar, de pular cercas de arame farpado e muros.

Raramente voltava para casa com os joelhos lisos.

Respondia ao apelo do chão e curava as varizes das árvores.

Subia descalço para não escorregar. Que delícia farejar as pontas dos troncos com os pés.

Preparei minha tez com a rapidez do mato.

Roubava frutas usando a camisa como cesta, que terminava pigmentada de ameixas, bergamotas e amoras.

Fazia estampas sem querer.

Chegou um momento em que a mãe desistiu de limpar e aceitou a volúpia da imaginação das frutas, do suor das frutas, do suco silvestre.

Limitou-se a avisar que não tinha conserto.

As manchas me davam a nobreza de ter vivido e me arriscado.

Não mudo o que de ruim aconteceu em minha vida. Não adapto a história de acordo com as intenções.

Mudo de idéia, mas não de passado.

Não sou de me remoer em resignações.

Já escutei muito de amigos: "se eu pudesse apagar o que eu fiz?"

Se apagasse o que não concordo, o que colocaria no lugar?

Eu seria mais espaço à venda do que habitado.

Arrepender-se do que foi feito não é apagar, mas aceitar a contradição, a oposição, a experiência negativa dentro da gente.

Admitir que o divórcio, a separação, o fim do namoro ajudam nas novas relações. Não há culpa onde houve vontade de acertar.

Se errei, é que o erro também precisava de mim.

Não conheço alegria que não deixa sinais.

As manchas indicam que exagerei para o bem e para o mal.

Todo excesso é amor.

Não sou de esfregar o passado na cara do outro.

As manchas são minhas, intransferíveis, e o vinagre não combina com a pele.(Fabrício Carpinejar)