sexta-feira, 21 de março de 2008

O escritor de microcontos...


O escritor de microcontos é um cara impaciente.

Decidiu criar barba, pois não gosta de perder tempo.

Esquece de cortar o cabelo em meio aos afazeres importantíssimos e volta e meia sai de casa sem se pentear por causa de um atraso imprevisto ou de um adiantamento de agenda.

É um homem sóbrio e de maneiras apressadas, porém atencioso.

Dedica sua extrema atenção ao minucioso planejamento de todas as suas tarefas.

Está sempre decidindo, não o que pretende fazer, mas o que vai deixar de fazer hoje.

Ele administra pendências.

Caso você precise de algo, ele tem um bom coração: dedicará a você o tempo necessário - não mais, não menos - e depois riscará algo de sua lista de afazeres, antes de sair com pressa.

O escritor de microcontos não se considera um escritor.

Ele é engenheiro, advogado, médico legista, gerente de uma mercearia. Ele tem uma vida cheia de coisas importantes e não liga para literatura.

Sequer se lembra da última vez que teve tempo de abrir um livro.

Se diz contente com as escolhas que fez, mas não consegue dormir à noite.

As histórias lhe enchem a mente durante o dia,

empatam seu raciocínio e povoam seus sonhos.

E ele acorda ainda mais cansado do que quando foi dormir,

cansado de viver intensamente 24 horas por dia.

Acordado, vive sua vida conforme o plano;

dormindo, vive todas as histórias confusas que não queria ter criado,

mas que se recusam a ir embora.

O escritor de microcontos acorda já suado, se levanta e abre as janelas.

Senta-se à mesa e escreve, um a um, todos os seus sonhos.

Os pedacinhos de que se lembra de uns, a totalidade esquartejada de outros.

São pedaços reduzidos e sintéticos.

Ele sabe que as histórias estão dentro de cada um, e que basta uma pista para que as pessoas despertem para elas e vivam-nas por completo, cada uma ao seu modo.

Ele escreve estas pistas em parte por crer na imaginação humana, em parte porque não consegue encaixar na sua agenda o tempo de escrever uma história inteira, em parte porque entende que as histórias estejam sempre inteiras e incompletas ao mesmo tempo e ele não gosta de dizer mais que o necessário.

Mais que isso, o escritor de microcontos não concebe o esforço desnecessário.

Ele viveu toda sua vida fazendo somente o que tinha de ser feito, comprimindo o tempo, espremendo os dias, otimizando os processos.

O desperdício, principalmente de tempo, lhe soa como uma insensatez, um descabimento.

As horas vão passando e ele enche dez, onze, doze páginas de histórias que ocupam uma linha cada.

Algumas precisam de mais palavras, outras de menos, mas todas levam apenas o número exato. Enquanto escreve, sua mente vai se esvaziando.

Aquela angústia, aquele suor, aquele barulho, como um raio, passam por suas mãos e preenchem o papel.

Não raro ele acorda no outro dia de um sono tranqüilo e reconfortante com o pescoço virado e a testa manchada de tinta de caneta.

A cabeça sobre o papel e os contos terminados.

São dias bons e proveitosos, geralmente mais calmos que os demais.

A mente está limpa, ele não confunde os afazeres, a agenda se articula como num jogo de tétris, cada coisa em seu lugar, cada peça em seu espaço.

Nestes dias ele chega a se esquecer de sua identidade indesejada e secreta.

O escritor de microcontos volta a ser somente um doutor em física nuclear, um neurocirurgião, um administrador de uma fazenda de avestruzes.

Vive como planejou viver, até que as histórias voltem a consumir sua paz, seu juízo e seu tempo. Elas sempre voltam.

Mal sabe o escritor de microcontos quantos escritores de enciclopédia gostariam de ter sua capacidade de síntese.

E a única ciência estudada seria a da síntese geral das coisas, que poderia se chamar Sintetilogia.

Talvez nesse dia, o escritor de microcontos pudesse finalmente sentar-se e perceber que fez tudo o que queria num só dia, e que ainda lhe sobrava bastante tempo.

Então ele se sentaria à mesa com toda a paciência, depois de ter almoçado longamente, lido o jornal e tomado um cafezinho.

Talvez ele se pusesse, após alguns momentos contemplando um objeto qualquer, a escrever romances e histórias cheias de detalhes.

Detalhes sem importância, que as pessoas poderiam muito bem intuir sozinhas, mas que eram os detalhes de um mundo que só existe em sua cabeça e que ninguém conhecia antes.

Talvez não precisasse nem mesmo deixar de escrever microcontos.

Talvez.