sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

"Viver é perigoso"



``Viver é muito, muito perigoso,

repetia o jagunço Riobaldo Tatarana,

personagem inesquecível de Guimarães Rosa.

Para muitos, porém,

a afirmação ultrapassa os limites literários e metafísicos.

O próprio viver cotidiano,

para os mais assustados,

é cancerígeno,

a acreditar no que lemos em jornais, revistas, sites, blogs,

e também no que "aprendemos" em conversas sem melhor assunto.

Já li e ouvi de tudo a esse respeito.

Que o incenso é altamente cancerígeno,

para desespero dos místicos de diferentes crenças.

Que o telefone celular é cancerígeno,

para desespero de 45% da população mundial,

o ouvido atento grudado nele.

Que o adoçante artificial é cancerígeno,

para desespero de todos os que fazem a eterna dieta.

Que excesso de perfume é cancerígeno,

para desespero de certas mulheres que nele se banham...

e de certos homens que o exemplo acompanham.

Que muito banho de sol é cancerígeno,

para desespero dos cariocas

e todos os que adoram uma boa praia

e suas areias ferventes.

Que aquele cheirinho de carro novo é cancerígeno,

para desespero de milhões de motoristas que com ele se deleitam.

Que o piercing e a tatuagem são cancerígenos,

para desespero dos adeptos da body art,

estetas de si mesmos.

Que o chimarrão é cancerígeno,

para desespero dos gaúchos que dele fizeram

uma forma de pensar e conviver.

Que a fumaça produzida nos churrascos

e que impregna as carnes é cancerígena,

para desespero de todos os carnívoros,

sejam gaúchos, paulistas,

maranhenses, cariocas...

Que o amendoim é cancerígeno,

para desespero dos que acreditam nos seus poderes afrodisíacos.

Que aquela cerejinha do sundae é cancerígena,

para desespero de meio mundo.

Que a batata frita é cancerígena,

para desespero do outro meio mundo.

Que muitas e variadas medicações são cancerígenas,

para desespero dos hipocondríacos.

Que a fumaça do cigarro inalada pelos não-fumantes

é cancerígena também,

para desespero dos não-fumantes que amam

amáveis fumantes.

E nada impede a inclusão de outros mil itens

numa longa e doentia lista.

Livros cancerígenos,

sobretudo os que vivem perdidos nos sebos.

Apertos de mão muito fortes talvez sejam cancerígenos.

Ônibus lotados certamente são cancerígenos.

O trânsito engarrafado provoca um câncer danado.

Notas de dinheiro velhas são cancerígenas por definição.

As novíssimas também.

Cancerígeno o hábito de ficar horas

e horas navegando na internet.

Cancerígeno não amar.

Cancerígeno humilhar e ser humilhado.

Cancerígeno, enfim,

viver pensando que tudo é cancerígeno.``

10-Abr-2008
Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor

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