quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Sorvete de Cheesecake


Diz a lenda que Joe Kennedy,
pai do presidente, pressentiu o crash de 29
ao receber dicas de investimento
do garoto que lustrava seus sapatos.
Se até o engraxate estava especulando
-- especulou o especulador --
era porque a especulação já tinha ido muito mais longe
do que qualquer especulador poderia ter especulado.
Eu, modéstia à parte, também farejei que algo ia mal na economia
alguns meses atrás, ao entrar numa grande vídeo-locadora
e dar de cara com um jogo de panelas
(linha Firenze, revestimento de teflon),
seis pares de meias brancas
(made in China, dez reais)
e uma seção inteira dedicada às lingeries.
Quando você acha calcinhas onde buscava Hitchcock,
só pode concluir que o mercado está completamente desregulado, não?
Na verdade, eu suspeitava que as coisas andavam confusas
desde uma remota tarde no século XX
em que a banca do seu Arlindo passou a vender água de coco.
Em pouco tempo o jornaleiro comprou um freezer vertical
e começou a oferecer também cervejas, refrigerantes e bebidas isotônicas,
onde antes havia apenas jornais e revistas,
abalando assim um dos pilares de meu pensamento infantil
-- a crença de que uma coisa era uma coisa,
outra coisa era outra coisa.
Preocupado com a quebra de meus paradigmas,
comecei a buscar alguma explicação no papo dos adultos.
Falavam sobre a globalização,
o fim das fronteiras e a abertura dos mercados.
Era isso: seu Arlindo estava abrindo um mercado.
E não só ele, percebi,
ao reparar no que acontecia com os postos de gasolina:
ali, naquela casinha onde antes funcionava uma borracharia,
com uma banheira de água imunda
e um pôster da Maria Zilda arrancado de uma Playboy de 85,
passaram a vender lasanhas congeladas,
papel higiênico, canetas hidrocor e outros itens
de primeira, segunda ou terceira necessidade.
O que era o tal fim das fronteiras só entendi nos anos 90,
não com desmantelo da Iugoslávia,
mas ao deparar-me com um saco de batatas-fritas sabor churrasco.
Depois vieram o sorvete de cheesecake,
o chocolate de cookies e a pizza de cachorro-quente
(e ainda crêem que o mercado se regula?!),
mas nem me abalei:
já estava claro que uma coisa poderia ser outra coisa e,
como vimos nos últimos meses,
era possível todas as coisas transformarem-se em coisa nenhuma.
Quando entrei na locadora, portanto,
e deparei-me com panelas, meias e calcinhas,
entendi que aquele era o apogeu do movimento iniciado
lá atrás com os cocos do seu Arlindo e que logo viria a débâcle.
O pai do Kennedy, em 29,
vendeu as ações e comprou terras e imóveis.
Eu, dentro de minhas limitações, apenas aluguei um filme
e levei um daqueles pacotes com seis meias,
pela incrível bagatela de dez reais.
Meias brancas, médias e lisas, como convém.
Afinal, em momentos de incerteza,
temos que nos refugiar na tradição.
(Blog de Antonio Prata - publicado no estadão)

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