quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O amor acaba


O amor acaba.

Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova,

depois de teatro e silêncio;

acaba em cafés engordurados,

diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar;

de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel

ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas;

na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio;

e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema,

como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão;

como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado;

na insônia dos braços luminosos do relógio;

e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg,

entre frisos de alumínio e espelhos monótonos;

e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão;

às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia;

no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar;

na epifania da pretensão ridícula dos bigodes;

nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas;

quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia,

onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar;

na compulsão da simplicidade simplesmente;

no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina;

no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias,

mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável

entre o pólen e o gineceu de duas flores;

em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas,

onde há mais encanto que desejo;

e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos,

caindo imperceptível no beijo de ir e vir;

em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero;

nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus,

ida e volta de nada para nada;

em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba;

no inferno o amor não começa;

na usura o amor se dissolve;

em Brasília o amor pode virar pó;

no Rio, frivolidade;

em Belo Horizonte, remorso;

em São Paulo, dinheiro;

uma carta que chegou depois, o amor acaba;

uma carta que chegou antes, e o amor acaba;

na descontrolada fantasia da libido;

às vezes acaba na mesma música que começou,

com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes;

e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros;

e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque;

no coração que se dilata e quebra,

e o médico sentencia imprestável para o amor;

e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados;

e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo;

na janela que se abre, na janela que se fecha;

às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa,

que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo;

às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido;

mas pode acabar com doçura e esperança;

uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor;

na verdade;

o álcool;

de manhã, de tarde, de noite;

na floração excessiva da primavera;

no abuso do verão;

na dissonância do outono;

no conforto do inverno;

em todos os lugares o amor acaba;

a qualquer hora o amor acaba;

por qualquer motivo o amor acaba;

para recomeçar em todos os lugares

e a qualquer minuto o amor acaba.

Paulo Mendes Campos(Crônicas líricas e existenciais. 2a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira)

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