sexta-feira, 30 de maio de 2008

No mundo da rua

O fosso social do Brasil parece não ter fundo,
mesmo em um país que convive a cada palmo de asfalto
com mendigos trôpegos e meninos cheirando cola.
Mas, nesse condomínio a céu aberto formado por moradores de rua,
cresce um personagem recente na galeria da miséria brasileira:
o desabrigado com teto.
Se voltassem todos os dias para casa de ônibus ou de trem,
essas pessoas teriam que usar o dinheiro guardado para comprar comida.
Por isso, dormem na rua.
Estima-se que, de cada quatro moradores que passam a noite nas ruas
e praças do Rio, um tem casa ou lugar onde dormir.
Moram na periferia, em lugares como Santa Cruz e Paciência, ou em conjuntos habitacionais criados pelo governo do Estado para atender justamente o trabalhador que mora longe.
Não adiantou. Como fica a quase duas horas do centro,
moradores do Nova Sepetiba voltam a morar nas ruas.
“São trabalhadores sem o direito de ir-e-vir por falta de dinheiro”,
define Maria Juraci, diretora da Fundação Leão XIII,
ligada ao Estado do Rio, que administra abrigos e albergues no Rio,
insuficientes para atender a essa nova demanda.
A miséria urbana mudou o perfil dos moradores de rua.
Hoje, camelôs, catadores de papel, encartadores de jornais, entregadores, flanelinhas e outros “profissionais” da crise
dormem nas ruas durante a semana.
O fenômeno é tão sério
que entidades que lidam com essas populações carentes
já fazem diferenciação entre “morador de rua” e “morador na rua”.
Os números variam,
mas, segundo o professor Dário de Souza e Silva Filho,
chefe do Departamento de Sociologia Urbana da Uerj,
é uma população que “não supera dez mil pessoas”,
sendo que a capital concentra 70% dos moradores de rua do Rio de Janeiro.
Perto de três mil perambulam entre abrigos e albergues.
Numa cidade com 457 favelas,
território já ocupado por trabalhadores de baixa renda,
a rua abriga os excluídos dos excluídos.
Isso que os estudiosos chamam de “estratificação da pobreza”.
“É uma população que muitos gostariam que fosse invisível,
mas que aumenta a olhos vistos como reflexo da pobreza do País”,
diz o psicólogo belga Xavier Tislair, 29 anos,
que deixou família e namorada na Bélgica
para coordenar, no Rio de Janeiro, o Projeto Meio-Fio,
criado pela ONG multinacional Médicos Sem Fronteiras
para atender à população de rua na
cidade.
“Estamos desconstruindo a imagem que a sociedade tem dessa população”, completa a psicóloga Lurdilena Ester dos Santos, 35 anos.
A grande maioria é de adultos em idade produtiva,
com algum tipo de emprego, formal ou informal.
Ao identificar mais de 500 pessoas vivendo apenas em ruas do centro,
a Médicos Sem Fronteira descobriu que 60% têm alguma referência familiar (parentes conhecidos), um terço vive há menos de seis meses nas ruas e apenas uma pequena parte mendiga ou vive de atividades criminosas.
Nove em cada dez são trabalhadores:
42% recolhendo material reciclável, 13% como biscateiros,
9% como vendedores ambulantes e até funcionários públicos, garis,
diaristas e operários da construção civil e indústria naval.
Só 17% não têm ocupação definida.
“Derrubamos dois mitos.
Primeiro, o de que a população de rua é de migrantes rurais.
São pessoas nascidas ou criadas no Estado.
Segundo, o de que é uma turba de bêbados, loucos e drogados.
São trabalhadores em idade produtiva, com instrução primária, sem emprego, sem casa ou sem condições de voltar para casa”, aponta o professor Dário de Souza, autor de Feios, sujos e malvados, o mais completo estudo sobre moradores de rua na cidade.
O trabalho mostra que 58% dos moradores de rua do Rio já tiveram carteira de trabalho assinada.
Desabaram do mercado formal direto para as ruas.
Outros ainda têm e a exibem quando são abordados pela polícia. “Eles não admitem ser confundidos com mendigos”, diz Souza.
O perfil dos “adultos de rua” é bem definido: homem, negro ou pardo, já frequentou a escola (quatro anos e meio de estudo, mesma média do País), está no auge de sua idade produtiva (média de 38 anos) e vive de atividades informais. Muitos foram expulsos pelo desemprego.
Outros pelo preço dos imóveis, inclusive nas favelas, que não têm mais para onde crescer e acabam loteando seus barracos a preços cada vez mais altos.
Ou pela violência do tráfico.
E um número cada vez maior pela impossibilidade
de pagar o transporte de volta para casa.