domingo, 3 de maio de 2009

Fragmento



Aquela não era a vida

com que sempre tinha sonhado.

Pensando bem,

passou muito pouco tempo sonhando

desde que sua vida começou,

e começou quando mesmo?

Ah, sim:

quando precisou pagar sua primeira conta.

Isso não quer dizer que ela tenha se tornado

uma mulher amargurada pela vida,

e sim uma mulher realista,

do tipo que tem os oito pés fincados na terra,

como um polvo-humano que caminha,

paga contas e usa a ponta de cada um de seus tentáculos

para conter infiltrações e buracos

que vão se formando no teto de cristal

com uma vista cada vez mais embaçada

pro céu estrelado

e pros sonhos que deveras acalentou.

Eram sonhos de quê?

Ela sequer se lembrava.

Ou lembrava vagamente dos personagens,

de alguns cenários,

de uma casinha com paredes e janelas brancas

e um vaso de flores amarelas sobre a mesa de jantar.

Ela sonhava com uma mesa de jantar bem no meio do sala,

uma mesa com quatro assentos,

porque em seus sonhos antigos,

havia sempre...

Bem, que besteira.

Ela sentia vergonha de si mesma

quando pensava nisso,

mas a verdade é que já sonhou em ter uma família

com mamãe, papai e filhinhos.

E um cachorro.

E uma vaca chamada Clementina.

Algumas galinhas, talvez.

E flores amarelas sobre a mesa da sala branca

divinamente aromatizada pelo café fresquinho,

saindo lá da cozinha na doce companhia de bolinhos de chuva.
Talvez o céu seja assim.

Mas quem, hoje em dia, consegue olhar pro firmamento e vislumbrar o céu?

Tudo que se vê é um misto de estrelas e sonhos

esquecidos ou destruídos pelo caminho.

Há tantos anos que tinha parado de sonhar

que chegava a reprimir um sorriso de contentamento

quando se lembrava dessas pieguices.

A memória de uma extinta capacidade de sonhar,

de alguma forma muito estranha, a aproximava das outras pessoas.

Das pessoas normais que, ao contrário dela, existiam sem doer.
Ela nunca soube como as pessoas normais faziam pra existir sem doer.

Talvez todos mintam,

ou talvez algumas pessoas

sejam simplesmente mais distraídas pra dor do que outras.

Talvez haja, de fato,

aquelas que não sentem nada e acham tudo fácil, simples e natural.

Essas pessoas talvez nem sonhem,

porque a vida delas deve ser um sonho acordado,

e é possível que tenham salas brancas

com vasos repletos de flores sobre a suntuosa mesa de jantar

com todos os seus oito assentos.

Ela tinha, em contrapartida,

oito braços prontos para lutar contra essas fraquezas.

Não era doce, não era adorável

e não sabia entregar seu coração a ninguém.

Mas se orgulhava de pensar que era forte.

(trecho do texto Fragmento - Blog Van´Or)

Nenhum comentário: