terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Ócio e Ociosidadde


(...)
Tem-se agora vergonha do descanso;
quase se experimentaria um remorso
com a reflexão mais demorada.
Pensa-se de relógio na mão,
mesmo quando se está a almoçar,
com um olho no correio da bolsa;
vive-se permanentemente
como alguém que tem medo de "perder" alguma coisa.
"Mais vale agir do que não fazer nada",
eis ainda um desses princípios
de carregar pela boca
que correm o risco de vibrar
o golpe de misericórdia
a qualquer cultura,
e qualquer gosto superior.
Esse frenesi
no trabalho dobra os afinados
de todos os modos;
pior,
enterra o próprio sentimento dessa forma,
o senso melódico do movimento;
as pessoas tornam-se cegas e surdas
a todas as suas harmonias.
A prova está na pesada precisão
que se exige agora em todas as situações
em que o homem quer estar honestamente
diante do seu semelhante,
nas suas relações com amigos,
mulheres, pais, filhos, patrões, alunos,
guias e príncipes;
tem-se falta de tempo,
tem-se falta de força
para consagrar à cerimônia,
os meneios da cortesia,
o espírito da conversa,
e o ócio de uma maneira geral.
Uma vez que a vida,
tornada caça ao lucro,
obriga o espírito a esgotar-se
sem repouso no jogo de dissimular,
de iludir,
ou de prevenir o adversário;
a verdadeira virtude consiste agora
em fazer uma coisa mais depressa do que um outro.
Dessa forma,

só em raras horas é que
as pessoas se podem permitir ser sinceras:
e nessas horas, está-se tão cansado que se aspira
não somente a "deixar correr"
mas a estender-se pesadamente a deitar-se.
(...)
Todos os dias o trabalho domina
mais e mais a consciência em seu proveito:
o gosto da alegria chama-se já
"necessidade de descanso";
começa a corar de si próprio.
(...)
Nesse ritmo as coisas poderão ir,
rapidamente, tão longe
que não se ousará mais ceder,
sem desprezo por si próprio
e sem experimentar remorso
ao gosto pela vida contemplativa,
ao desejo de passear
em companhia de pensamentos
e de amigos.
(...)

(A Gaia Ciência de 1881 -item 329 -Nietzsche)

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