
Não sou de esfregar manchas com vinagre e sal.
Ficar esbaforido com uma toalha tentando reparar o estrago ou estender o pano na pia como um alucinado procurando a aliança no ralo ou me banhar de talco como um bebê.
Minha memória é feita de manchas.
A que eu mais admirava era a do fundo do estojo do lápis de cor.
Não queria trocar a caixinha de madeira.
Iniciava o ano letivo e riscava o estojo da lista de material escolar.
Fazia beiço. O fundo tinha a graça do risco involuntário, emaranhado de cores que buscavam cada uma a sua maneira gritar mais alto.
A paleta resplandecia intensa, úmida, pintura na rocha.
O estojo fazia barulho com a tampa.
O barulho me acordava para a aula.
Outra mancha que me tranqüiliza é a do vinho na toalha da mesa.
Meu pai bebia um cálice e não havia jeito da toalha passar imune à borra na janta.
A mancha do vinho significava a hora de dormir.
O círculo vermelho no linho me anoitecia, um relógio de pano.
Sempre fui de me sujar, de me espalhar, de pular cercas de arame farpado e muros.
Raramente voltava para casa com os joelhos lisos.
Respondia ao apelo do chão e curava as varizes das árvores.
Subia descalço para não escorregar. Que delícia farejar as pontas dos troncos com os pés.
Preparei minha tez com a rapidez do mato.
Roubava frutas usando a camisa como cesta, que terminava pigmentada de ameixas, bergamotas e amoras.
Fazia estampas sem querer.
Chegou um momento em que a mãe desistiu de limpar e aceitou a volúpia da imaginação das frutas, do suor das frutas, do suco silvestre.
Limitou-se a avisar que não tinha conserto.
As manchas me davam a nobreza de ter vivido e me arriscado.
Não mudo o que de ruim aconteceu em minha vida. Não adapto a história de acordo com as intenções.
Mudo de idéia, mas não de passado.
Não sou de me remoer em resignações.
Já escutei muito de amigos: "se eu pudesse apagar o que eu fiz?"
Se apagasse o que não concordo, o que colocaria no lugar?
Eu seria mais espaço à venda do que habitado.
Arrepender-se do que foi feito não é apagar, mas aceitar a contradição, a oposição, a experiência negativa dentro da gente.
Admitir que o divórcio, a separação, o fim do namoro ajudam nas novas relações. Não há culpa onde houve vontade de acertar.
Se errei, é que o erro também precisava de mim.
Não conheço alegria que não deixa sinais.
As manchas indicam que exagerei para o bem e para o mal.
Todo excesso é amor.
Não sou de esfregar o passado na cara do outro.
As manchas são minhas, intransferíveis, e o vinagre não combina com a pele.(Fabrício Carpinejar)